sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Uma Conversa com o Seu Reflexo.



Em uma casa de cuidados especiais para pessoas que sofrem de doenças mentais não se sabe onde, a figura de um homem aproxima-se lentamente no meio da penumbra de uma sala, ele fica imóvel na frente de um espelho qualquer e contempla o seu reflexo.


Oi? Tudo bem? Você me parece pálido, será que está doente? Será câncer? Provavelmente é, mas deixemos essas questões bobas de lado, tratemos do que me trouxe aqui hoje, as vozes que rodeiam minha cabeça contaram-me um segredo, mas você não pode falar para ninguém, ou eles dirão que você é louco, talvez eles sejam cegos ou simplesmente não aceitam a verdade que está bem na frente de seus olhos.
Sabe o que é? Eles me mostraram, e eu vi, vi uma linha que transcorre acima de um abismo sombrio, tenebroso, e ao mesmo tempo excitante, eu examinava cada passo que dava ao atravessar aquele ponto melindroso, afinal, cair não estava em meus planos, seria um mistério ao qual eu não estava disposto a descobrir.
Mas a questão é que ao chegar ao outro lado a visão que tive não foi nada agradável, foi terror, foi medo, foi pavor e foi horrível.
Vários homens e mulheres misturados numa grande multidão e confusão, uns caídos agonizavam, uns já estavam mortos, e outros que caminhavam de um lado para o outro.
Esses que estavam de pé caminhavam frenéticamente, determinados em suas convicções, obstinados, apressados, pareciam não dar por visto os que estavam moribundos e nem os que jaziam ali.
Os moribundos tinham a tez branca e cadavérica, alguns entoavam cantigas depressivas, outros gritavam e se esgoelavam pedindo ajuda com seus corpos dilacerados, arrastando-se em meio a fezes, vômitos e podridão, outros tão fracos estavam que a voz quase não lhes saia, e quando saia era totalmente valetudinária.
Os mortos foram que me fizeram ver o segredo que vim contar-lhe hoje, eles estavam lá, caídos e prostrados, inertes, e suas almas eram visíveis para mim, elas vagavam pela atmosfera sinistra, o fedor se transformou em vapor, e como fedia aquele lugar.
Eu pude ver a ambição, a ganância, o egoísmo, a maldade, a dor, a miséria e o sofrimento dos homens, eu vi isso tão forte, mas não é tudo, as vozes disseram-me para examinar mais uma vez o fedor dos corpos, quem dera não o tivesse feito, pois a visão foi vil para meus olhos, era como se arrancassem meu coração, ou então o crivassem de balas.
Apenas seis letras, que piscavam como painéis luminosos em cima das cabeças de cada um que ali estavam inclusive na minha, seis letras, e eu chorei, chorei como uma criança que pede colo e precisa da mãe, seis letras, chorei por horas, e cada vez que ousava olhar para a multidão a minha frente chorava mais, apenas seis letras, por fim secaram as lágrimas e só restou revolta, indignação e medo, corri querendo fugir, mas já não encontrei a linha que me trouxera até aquele lugar amedrontador, caminhei pela lateral do abismo e nada, nenhuma saída, nem lugar para se esconder, apenas seis letras rondavam meu pensamento, então eu pulei no abismo, na escuridão, no silêncio, no obscuro e mortificado breu do abismo.
Está curioso para saber que letras eram aquelas em cima da cabeça das pessoas? Pois eu vou dizer-lhe...

- Devo falar ponderadamente, minuciosamente e com muito cuidado, era: C – Â – N – C – E – R

Soltando risos tímidos ele fala - Sim, era câncer, as vozes me disseram que nós somos os cânceres da humanidade, sim nós somos os cânceres.
Gritando ele diz - Sim, cada um de nós.
Agora gritando e sorrindo histericamente ele berra aos quatro ventos que somos os Cânceres do mundo, cânceres, eu, você, ele, eles, todos nós, os cânceres.

Com ele ainda gritando entram os empregados do centro de cuidados e levam-no a força para fora a fim de sedá-lo.